quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Lisboa não tens mais encantos

Velocidade,
Cheiros,
Ruído.

Onde pensaste tu viver?

Pensaste em ser feliz?

Lisboa das cores:
Do preto, do verde e do amarelo.

O cheiro nauseabundo das tuas ruas,
O mofo das tuas casas,
O estrume do que és:
Podre,  só, cinzenta.

Gentes fugindo das avarias,
Os gritos e as caras angustiadas,
E tu,
chuvosa e ventosa,
Rindo por entre as ondas poluídas do teu Tejo.

E eu sento-me aqui junto da tua ilustre estátua e olho pelo horizonte para a outra margem.

O teu olhar cego e vidrado,
Cor de cadáver e roupas molhadas.

Porque te putrificas tu nesta imundície inveterada?

Porque foges tu da insanidade?

Cais na graça da desgraça
Rindo-te do podre e envelhecido.

Que pensaste tu por entre dedos,
Onde o mar passou-te pelas mãos
E escorreu-te pela cara.

E quando cai a noite vens tu em trapos
Com a pele suada e rugada,
Mendigando por um bocadinho de sol.

Não és mais do que uma criatura
Vil e reles
Por entre colinas
Acentuadas e desertificadas.

Os teus cabelos negros e oleosos
Varridos pelo vento gelado e pela poeira tóxica.

Os teus olhos castanhos trazem
 a amargura do teu olhar.

Pensaste tu em ser rainha
E nem com o tremer de terra te abalaste.

Ficaste só, apenas só.

domingo, 15 de março de 2015

Alzheimer parte III

Voltei a entrar por aquela porta.

Não sei o que me esperava,
Nem o que acontecia.

Passaram-se décadas desde que lhe toquei,
Pela primeira vez,
A sua pele.

Teria ela 20 anos e eu mais 10.

Os seus longos cabelos pairavam na brisa primaveril,
Doirados, muito brilhantes,
E os seus olhos meigos olhavam-me com delicadeza.

Sempre fui um homem de paixões,
De histórias,
De muita vida.

Ela atenciosa,
Bondosa,
Simplesmente maravilhosa.

Peguei na sua mão e levei-a
Comigo pelo mundo.
Fiz com que visse as mais lindas paisagens,
Para que ficasse na sua memória
A mais bela paixão.

Corremos o mundo,
Trazendo connosco
O mais belo ninho.

Entrei pela porta da sala grande escura,
Cuja a sombra cobria um rosto pálido e só.

Ela sentada à janela mirando o melro que tinha poisado,
Esticava o seu pequeno dedo, 
Cuja sombra abanava no chão.

No tremer dos seus olhos brotavam lágrimas,
Lágrimas de solidão,
De dor,
De mágoa.

Ela esticava o dedo na esperança que o pequeno melro voltasse
A poisar nos seus dedos magros e deformados.

Não haveria maior alegria do que voltar a correr no prado,
Verde e fresco deixado pelo orvalho da manhã,
Saltar por rochas, pedras e pedrinhas,
Cheirar as mais belas flores,
E tocar ao de leve a água límpida do riacho.

Ali está ela deitada na poltrona
Com o seu vestido amarelo canário.
A enfermeira colocou uma pequena madeixa de cabelo grisalho atrás das orelhas,
Juntamente com batom e verniz rouge.

Hoje é o último dia da meta,
Amanhã será o derradeiro e obscuro final.

Toco-lhe ao de leve nas maçãs do rosto
Na esperança de que se recorde do grande amor de outrora,
Onde corríamos contra as marés para fazê-lo vincar-se nos nossos corações.

Ela olha-me intensamente,
Corrompendo os sangue nas minhas veias
E parando a minha respiração.

Solta um gemido confuso e triste,
Como quem se despede de nós.

Aperta a minha mão com força,
Aconchegando-a no seu peito.

E ao meu ouvido ela solta:
"Nunca me esquecerei de nós."